‘Meu golpe era fingir estar apaixonada’: ela namorou por seis meses com homens que aplicam golpe do amor e denuncia crimes em exposição

 
 

Thatiana Cardoso passou três anos estudando golpistas que atraem mulheres para aplicar golpes financeiros e criou a exposição ‘O Amor morre mais de indigestão do que de fome’, que ela define como ‘vingança poética’ para as mulheres que foram vítimas

Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo (SP)

25/03/2024 03h00  

Em 2021, quando a pandemia de covid completou seu primeiro (longo) ano, o inbox do Instagram da artista Thatiana Cardoso recebeu uma mensagem incomum. O remetente era um dito soldado norte-americano que estaria em missão no Afeganistão. E o assunto? Ele estava perdidamente apaixonado por ela. Casada e com uma filha pequena, a artista não buscava um novo amor e achou tudo aquilo muito estranho. Antes disso, nunca tinha ouvido falar em golpe do amor.

 Dois indícios chamaram a atenção dela. “Estranhei quando ele me chamou de ‘donzela’. E, ao abrir o Instagram dele, vi fotos de armamentos pesados misturados com mensagens românticas.” Ao fazer uma busca reversa no Google, descobriu que a foto vinha de um banco de imagens do Exército dos Estados Unidos. Além da fotografia, encontrou alertas da Interpol, CIA e FBI, que avisavam que aquela foto havia sido roubada por pessoas que criam perfis falsos nas redes sociais para atrair mulheres e aplicar golpes financeiros.

"Ele demonstrou ser muito romântico e contou uma história super triste: de que era viúvo, tinha um filho e só queria casar com uma princesa para cuidar dele e da casa”, conta a artista a Marie Claire, em entrevista por vídeo. Um modus operandi que, depois entendeu, era frequente.

Por pura curiosidade, passou os três anos em diante servindo de “isca” para golpistas. Para conseguir chegar até eles, Thatiana teve acesso ao banco de imagens roubadas do Exército dos Estados Unidos e passou a procurar perfis que as usavam no Instagram. No perfil pessoal, arquivou fotos da filha, fingiu que era divorciada e assumiu uma nova persona. “Usei o mesmo perfil porque, por eu ser artista, pensavam que eu tinha dinheiro. Fazia parte do disfarce”, diz.

A artista foi fundo no experimento de se vestir de uma versão fictícia de si mesma, a ponto de manter relacionamentos com alguns destes homens por períodos que variaram de três semanas a seis meses. “Meu golpe era fingir estar apaixonada, dar trela e ver até onde esses homens queriam ir. Muitos desapareciam rápido. Acredito que porque queriam aplicar logo o golpe e acabaram conseguindo fazer outra vítima.”

Esse foi um processo, ela conta, que se tornou muito exaustivo emocionalmente. “Lembro que passava dias mandando áudios em inglês, em que precisava parecer muito apaixonada. Criei muitas mentiras para sustentar esses ‘namoros’, o que demandou muito de mim e do meu corpo.”

 O Amor morre mais de indigestão do que de fome

A curiosidade logo se transformou em trabalho, e levou Thatiana a transformar golpe do amor em arte. O resultado desses três anos de pesquisa de campo é a exposição O Amor morre mais de indigestão do que de fome, em cartaz na Pinacoteca de São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, até 29 de junho.

A mostra reúne 18 obras que se dividem entre fotografias, vídeos, performances e instalações que expõem a existência do crime, as táticas dos golpistas e as dores que ficam para as mulheres que se tornam vítimas. Bebendo da fonte da ironia, Thatiana ressignifica a estética cor-de-rosa e do Dia dos Namorados em ironia e repulsa.

 O resultado é uma denúncia às violências psicológicas e patrimoniais que só são possíveis graças à pressão social de que mulheres devem, prioritariamente, almejar um relacionamento. E não só, mas um amor romântico, de “conto de fadas”, em que devem ser salvas e protegidas por um homem.

Essa denúncia, com requintes de deboche e humor, se materializa em obras como Explosão de Amor, em que 30 ursinhos de pelúcia com camisas de força segurando uma granada vermelha; em um ensaio com um urso gigante chamado Ronaldo; ou em Era Para Ser Doce, uma casinha de vidro preenchida com 700 cápsulas de remédio – cada uma delas com uma frase que um golpista disse nas conversas com Thatiana. Ironicamente, muitas delas trazem versículos bíblicos ou falam de Deus.

 O amargor vem não apenas de sua própria indignação, mas das inúmeras conversas que teve também com vítimas do golpe do amor. "Os golpes são extensos e mexem com o psicológico delas: eles criam um conto de fadas, dizem que têm uma casa linda nos Estados Unidos, que estão esperando uma princesa. Ninguém pede dinheiro do dia para noite."

“Não quero que uma vítima deste golpe se sinta culpabilizada, mas acredito que possa ser um espaço de cura ou de exposição de suas dores. Frequentemente, essas mulheres são descredibilizadas e tidas como ingênuas por cair neste golpe”, pensa.

Esse tipo de estelionato emocional e financeiro tem impactos grandes no mundo. Inclusive no Brasil. Dados de 2023 do hub Era Golpe, Não Amor, que presta suporte a vítimas de golpes financeiros em relacionamentos amorosos, constatou que 4 em cada 10 brasileiras já foi vítima do golpe ou conhece alguém que foi. Outra pesquisa encomendada por Marie Claire e feita pela Toluna em outubro de 2023 mostra que 1 em cada 3 mulheres já se relacionou com perfis fakes e usaram de outra identidade e história para atraí-las. Para 20% delas, a pessoa por trás do perfil pediu favores financeiros ou dinheiro e, depois, sumiu.

Com a exposição, Thatiana pretende visibilizar uma dor que nem sempre é abordada da maneira como merece: com seriedade, sem fazer com que as vítimas se sintam ridicularizadas.

 “A arte não é descolada da realidade e, às vezes, toca em lugares que não são tão bonitos. Tenho o entendimento que, ao falar da violência, a arte também fala, principalmente, sobre a nossa vida. Por meio destes trabalhos, sinto como se de alguma forma estivesse me vingando poeticamente pelas mulheres que foram vítimas.”

https://revistamarieclaire.globo.com/cultura/noticia/2024/03/golpe-do-amor-artista-namora-golpista-exposicao-thatiana-cardoso.ghtml

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English version

“My trick was to pretend to be in love”: she dated men who run romance scams for up to six months and exposes the crimes in an exhibition

Thatiana Cardoso spent three years studying scammers who target women for financial fraud and created the exhibition “Love Dies More of Indigestion Than of Hunger,” which she describes as a “poetic revenge” for the women who were victimized.

By Camila Cetrone, Marie Claire staff — São Paulo (SP)
03/25/2024 03:00

In 2021, when the COVID pandemic reached its first (long) year, the Instagram inbox of artist Thatiana Cardoso received an unusual message. The sender claimed to be an American soldier on a mission in Afghanistan. And the subject? He was hopelessly in love with her. Married and with a small child, the artist was not looking for a new romance and found the message very strange. Before that, she had never heard of romance scams.

Two details caught her attention. “I found it strange when he called me ‘damsel.’ And when I opened his Instagram I saw photos of heavy weaponry mixed with romantic messages.” After doing a reverse image search on Google, she discovered the photo came from a United States Army image bank. In addition to the photograph, she found alerts from Interpol, the CIA and the FBI warning that the image had been stolen by people who create fake social media profiles to lure women and run financial scams.

“He presented himself as very romantic and told a very sad story: that he was widowed, had a child and only wanted to marry a princess to take care of him and the household,” the artist told Marie Claire in a video interview. A modus operandi she later understood to be common.

Out of pure curiosity, she spent the following three years acting as “bait” for scammers. To find them, Thatiana accessed the stolen image bank of the U.S. Army and began searching for profiles using those photos on Instagram. On her own profile she archived photos of her daughter, pretended to be divorced and assumed a new persona. “I used the same profile because, since I am an artist, they thought I had money. It was part of the disguise,” she says.

The artist took the experiment far, dressing up as a fictional version of herself and maintaining relationships with some of these men for periods ranging from three weeks to six months. “My trick was to pretend to be in love, play along and see how far these men would go. Many disappeared quickly. I believe it is because they wanted to carry out the scam as soon as possible and then found another victim.”

She says the process became emotionally exhausting. “I remember spending days sending voice notes in English, in which I had to sound very in love. I invented many lies to sustain those ‘relationships,’ which demanded a lot from me and from my body.”

Love Dies More of Indigestion Than of Hunger

Curiosity soon turned into work, and led Thatiana to turn the romance scam into art. The result of these three years of field research is the exhibition “Love Dies More of Indigestion Than of Hunger,” on view at the Pinacoteca of São Bernardo do Campo, in the São Paulo metropolitan region, through June 29.

The show brings together 18 works divided among photographs, videos, performances and installations that expose the existence of the crime, the scammers’ tactics and the pain left with the women who become victims. Drawing on irony, Thatiana re-signifies the pink aesthetic and Valentine’s Day imagery as provocation and repulsion.

The result is a denunciation of the psychological and patrimonial violence made possible by the social pressure that women should primarily aspire to a relationship. Not just any relationship, but a romantic, “fairy-tale” love in which they are to be rescued and protected by a man.

That denunciation, laced with mockery and humor, materializes in works such as Explosion of Love, in which 30 teddy bears in straitjackets hold a red grenade; in a series featuring a giant teddy bear called Ronaldo; and in Era Para Ser Doce, a glass house filled with 700 medicine capsules, each containing a phrase a scammer said to Thatiana. Ironically, many of those phrases include Bible verses or references to God.

The bitterness comes not only from her own indignation but from the many conversations she also held with victims of romance scams. “The scams are extensive and affect them psychologically: they create a fairy tale, say they have a beautiful house in the United States, that they are waiting for a princess. No one asks for money overnight.”

“I do not want a victim of this scam to feel blamed, but I believe this can be a space for healing or for exposing their pain. Frequently, these women are discredited and dismissed as naive for falling for this scam,” she says.

This kind of emotional and financial fraud has major impacts worldwide, including in Brazil. Data from 2023 by the hub Era Golpe, Não Amor, which supports victims of financial scams in romantic relationships, found that 4 in 10 Brazilian women have been victims or know someone who was. Another survey commissioned by Marie Claire and conducted by Toluna in October 2023 shows that 1 in 3 women have interacted with fake profiles using another identity and story to attract them. For 20% of those women, the person behind the profile asked for financial favors or money and then disappeared.

With the exhibition, Thatiana aims to make visible a pain that is not always addressed as it should be: seriously and without ridiculing the victims.

“Art is not separated from reality and sometimes touches places that are not so beautiful. I understand that, by speaking about violence, art also speaks about our lives. Through these works, I feel as if I have in some way been vindicating the women who were victims, a poetic revenge.”