Sob a pele rosa: pinturas e desenhos de Thatiana Cardoso

Por José Bento (Setembro, 2024)

 
 

O desentupidor de pia desenhado sobre papel algodão apresenta o aspecto arcaico de um antigo retrato de linho, embora também possa ser visto como uma pintura moderna. O fundo fulgurante do trabalho que intitula a exposição Sob a pele rosa sugere o mundo espiritual dos ícones e verônicas. Traços e pinceladas, porém, realizam sínteses formais modernistas. O conjunto dos objetos retratados por Thatiana Cardoso poderia ser vinculado à linhagem de Giorgio Morandi e Iberê Camargo, investigadores das formas de transpor o mundo visível para superfícies planas explorando espacialidades de objetos industrializados, como garrafas e carretéis. Esta nova classe de coisas aparece em lugar dos objetos naturais e artesanais, que assinalavam a passagem do tempo nas naturezas-mortas.

O predomínio do rosa e certos halos espirituais problematizam o legado moderno. A artista parece não considerar as coisas apenas como coisas, nem as formas como formas. Desentupidor, batedor, espremedor, coador, pimenteiro, rodo, funil, garfo e faca não são objetos quaisquer, mas ferramentas de trabalho doméstico. Investem-se do “caráter místico, fetichista” de “fantasmagoria” do produto do trabalho que assume a forma de mercadoria, “ao mesmo tempo apreensível e inapreensível”, repleto de “sutilezas metafísicas” (conforme comentário do filósofo Giorgio Agamben). O “fetiche da mercadoria” segundo Marx consiste no transe “feérico” que elide os traços das relações produtivas, operação sem a qual a alienação do trabalho não seria completa. Mas a teoria marxista ignorou a “sujeição das mulheres para a reprodução da força de trabalho”, que a cientista social Silvia Federici investiga.

Filha de maranhenses emigrados para a periferia de São Bernardo do Campo, Thatiana Cardoso cresceu no meio pentecostal. Seu trabalho reverbera memórias da mãe confinada ao trabalho doméstico, da censura à formação profissional, não apenas dos desmandos dos homens, mas da exigência de aceitá-los e de se sentir responsável por eles. As “diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora” expostas por Federici como necessárias para o desenvolvimento capitalista, para além da concentração do capital, Thatiana Cardoso viveu-as na carne, literalmente “sob a pele rosa”, ou em luta contra o papel social que lhe foi imposto. Nestes desenhos e pinturas, talvez mais do que nas fotografias e performances, que também se insurgem contra a “destruição do poder das mulheres”, a artista encena as formas “traiçoeiras” como, embora primordial para o capitalismo, a reprodução da força de trabalho foi socialmente aceita como trabalho não remunerado.

Em sintonia com Federici, que aponta a “transformação do corpo em máquina para o trabalho”, Thatiana Cardoso afirma que “corporifica o objeto para não objetificar o corpo”. Ao pintar talheres com capilares sanguíneos, desenhar o espremedor moendo carne com expressivas pinceladas de óleo, ou tênues traços de guache, e ao utilizar a tinta acrílica para pintar o pimenteiro como uma aparição fantasmagórica, figuras que nos olham do além, não sem certa sensualidade no modo como são moldados seus volumes, a intenção declarada da artista é “fazer o objeto pulsar”.

Desvinculada do gênero feminino até o século vinte, a cor rosa impõe nestes trabalhos uma atmosfera opressiva. Thatiana Cardoso descreve-a como signo de seus embates com o “patriarcado do salário”, que lhe perturba o sono e ameaça de colapso. Como os contrafeitiços de um “materialismo mágico”, róseas névoas de pinceladas expõem ferramentas de trabalho doméstico como fetiches, no sentido antropológico de objetos de culto intrinsecamente potentes. O trabalho de arte decifra um mistério mais profundo do que o “segredo da mercadoria”, expondo os meios brutais e sutis que disfarçaram a centralidade da violência contra as mulheres no desenvolvimento do capitalismo.

English version

The sink plunger drawn on cotton paper carries the archaic aura of an old linen portrait, though it may also be read as a modern painting. The radiant background of the work that lends its title to the exhibition Under the Pink Skin evokes the spiritual atmosphere of icons and Veronica veils. Yet its lines and brushstrokes perform modernist formal syntheses. The ensemble of objects portrayed by Thatiana Cardoso could be linked to the lineage of Giorgio Morandi and Iberê Camargo, artists who investigated the ways to transpose the visible world onto flat surfaces by exploring the spatiality of industrialized objects such as bottles and reels. This new class of things replaces the natural and handcrafted objects that once signaled the passage of time in still lifes.

The predominance of pink and certain spiritual halos call the modern legacy into question. The artist seems to treat things as more than mere things, and forms as more than pure forms. Plunger, whisk, juicer, strainer, pepper shaker, squeegee, funnel, fork, and knife are not ordinary objects but tools of domestic labor. They carry the mystical, fetishistic character the phantasmagoria of the product of labor that takes the form of a commodity, “at once graspable and ungraspable,” filled with “metaphysical subtleties,” as philosopher Giorgio Agamben notes. Marx’s notion of the commodity fetish lies in this fairy-like trance that conceals the traces of productive relations, an operation without which labor alienation would be incomplete. Yet Marxist theory largely ignored the “subjugation of women in the reproduction of labor power,” as investigated by social theorist Silvia Federici.

The daughter of migrants from Maranhão who settled in the outskirts of São Bernardo do Campo, Thatiana Cardoso grew up within a Pentecostal environment. Her work reverberates with memories of her mother, confined to domestic labor, deprived of professional education, not only under men’s domination but also under the demand to accept it and feel responsible for it. The “differences and divisions within the working class” that Federici identifies as essential to capitalist development beyond the concentration of capital were lived by Cardoso in her own flesh, literally “under the pink skin,” or in constant struggle against the social role imposed upon her. In these drawings and paintings, perhaps even more than in her photographs and performances (which also rebel against the “destruction of women’s power”), the artist stages the treacherous forms through which, although fundamental to capitalism, the reproduction of labor power was socially accepted as unpaid work.

In resonance with Federici’s idea of “the transformation of the body into a machine for labor,” Thatiana Cardoso declares that she “embodies the object to avoid objectifying the body.” By painting cutlery with blood vessels, depicting a juicer grinding flesh with expressive oil strokes or delicate gouache lines, and rendering a pepper shaker in acrylic as a ghostly apparition, figures that seem to gaze back at us from beyond, her declared intention is “to make the object pulse.”

Once detached from the feminine gender until the twentieth century, the color pink in these works imposes an oppressive atmosphere. Cardoso describes it as a sign of her struggles against the “patriarchy of the wage,” which disturbs her sleep and drives her to the brink of collapse. Like the counter-spells of a magical materialism, rosy mists of brushstrokes reveal domestic tools as fetishes in the anthropological sense, objects of intrinsic potency and worship. Her art uncovers a mystery deeper than the “secret of the commodity,” exposing the brutal and subtle means by which the centrality of violence against women was concealed in the development of capitalism.